Ao primeiro contato, a proposta deste texto pode parecer discordante, afinal o carnaval é um evento cultural, coletivo e a parafilia é uma condição individual. No esboço que segue haverá uma tentativa de aproximação e de discernimento entre esses dois fenômenos. Antes de aprofundar na questão, alguns aspectos preliminares merecem atenção.
O carnaval é uma festividade disseminada pelo Ocidente e manifesta por apresentações diversas em cada povo. Para o brasileiro seu significado é singular, pois como fruto resultante do enlace entre as raízes mais profundas (num encontro sintônico e rítmico de culturas), o carnaval é expressão da nossa identidade.
Tem origem incerta em festas análogas da antiguidade, que comemoravam principalmente marcos do ano vinculados à agricultura e à fertilidade. Das famosas festas dionisíacas na Grécia antiga às Saturnálias romanas (estas contavam com carros alegóricos na forma de navios, inspirados em cultos à deusa egípcia Ísis), as celebrações eram extensas e abundantes. Há ainda registro de festas celebradas por babilônios e persas, que desfrutavam de inversões de papéis entre classes sociais. Mesmo na Idade Média as comemorações perduraram e – embora mal vistas pela Igreja Católica – foram de certa forma toleradas para que as pessoas pudessem cometer seus excessos antes da rigorosa quaresma. Além da embriaguez, das brincadeiras, da liberdade, do teatro, era comum que se colocasse as normas gerais “às avessas”: tanto as regras quanto os papéis sociais e gênero. No Brasil esses encontros foram embalados pelo ritmo e dança com marcados componentes africanos, tão familiares aos brasileiros. Mesmo que todas as festanças citadas se distanciem pelos séculos, pela cultura, pela geografia e pelo calendário anual, existe algo compartilhado entre elas.
Esses poucos dias colocam todo o resto do ano entre parênteses. Há uma ruptura com o cotidiano no seu sentido mais amplo. Abrem-se alas para que as ruas virem verdadeiros palcos, nos quais cada um escolhe sua máscara ou fantasia e tem a possibilidade de – para além do vestir-se como – incorporar a identidade pretendida. O fantasiar-se, o vestir uma máscara, é o ato de esconder quem se é, é ocultar algo da identidade. Um objeto é posto entre sujeitos, um é visto como aquele objeto que se propôs a ser. Deixa de ser visto ou chamado pelo seu nome. Passa a ser “a mulher maravilha”, “a fada” ou “o bombeiro”. Talvez assim, o outro não se aproxime do sujeito pelo que é de modo inteiro, mas pela imagem da fantasia ou do próprio mistério. Com a subjetividade apagada e anestesiados pela embriaguez, os participantes se deixam levar por toda massa de gente, envoltos nos ritmos da terra. O carnaval é extremamente corporal: os corpos em uníssono acompanham o movimento da galera. Termo tão corriqueiro no linguajar carnavalesco, o “bloco” remete imediatamente a um condensado, uma união, no caso, de muitos corpos.
Em meio ao bloco, os limites ficam enuviados, as regras sociais se perdem e abrem espaço para a experiência inconsequente do momento. No carnaval não existe “amanhã”, a noção cronológica se perde e todos os dias do carnaval se voltam para o agora. Assim, as experiências são vividas naquele momento presente, intensas. O impulso derrama fácil a alegria compartilhada e permite a agressividade inflamada, mas com pouco sustento – no segundo seguinte uma nova música ou o surgimento de mais um chopp transformam a mais calorosa briga em sinceros abraços.
Em meio à união movimentada de corpos, à experimentação da inexistência do amanhã, à frouxidão das regras e dos limites, a expressão da sexualidade pelas mais diversas formas é propícia. A coletividade carnavalesca se manifesta também através do sexo. Afinal, ele é uma união de corpos. Neste caso, de muitos corpos. No momento em que a coletividade se sobrepõe e os limites se afrouxam, o próprio limite individual se perde. Quando há perda da individualidade, o sujeito se torna objeto diante do outro, quase como uma extensão ou propriedade de alguém. No coletivo, os limites entre um sujeito e o outro estão borrados. A etapa da aproximação entre indivíduos através do cortejo praticamente se perde. Ao transpor a situação para o carnaval, um pode roçar os genitais em outro desavisado que não conhece ou reconhece o agente do ato, que se encontra passivo, impossibilitado de manifestar seu consentimento. Simplesmente está lá, à mercê do coletivo. A exposição das intimidades nem sequer causa o efeito de impressionar o outro, afinal, no coletivo tudo o que era próprio passa a ser compartilhado. Por todos os lados o voyeurista pode observar o exercício sexual alheio, no entanto o objeto observado certamente tem ciência do olhar do outro no contexto do carnaval.
A expressão da sexualidade nesse contexto é apenas mais uma manifestação do estado carnavalesco. O evento reforça que o interesse parafílico e o comportamento sexual “não-convencional” não são tão pouco usuais na população geral, ideia que ganhou maior robustez nos últimos anos (Oliveira Jr. & Abdo, 2010; Castellini et al., 2018; Bártová et al., 2021). Comportamentos sexuais parafílicos isolados que ocorrem nesse evento não configuram per se uma parafilia, tampouco transtorno parafílico, uma vez que estes são pronunciamentos que transcendem um momento e são experimentados com maior constância na continuidade de um sujeito.
Por fim, este texto não esgotou, tampouco esgotaria o tema, mas se aventurou a ampliar a observação de fenômenos clínicos e cotidianos, com uma proposta de abertura para novas reflexões, que poderão ser abordadas em outros momentos.
AUTOR: Louise de Lemos Bremberger
Oliveira, W. M. D. Jr, & Abdo, C. H. N. (2010). Unconventional sexual behaviors and their associations with physical, mental and sexual health parameters: A study in 18 large Brazilian cities. Revista Brasileira de Psiquiatria, 32:264–274.
Castellini G, Rellini AH, Appignanesi C, et al. (2018). Deviance or Normalcy? The Relationship Among Paraphilic Thoughts and Behaviors, Hypersexuality, and Psychopathology in a Sample of University Students. J Sex Med, 15:1322–1335.
Bártová, K., Androvičová, R., Krejčová, L., Weiss, P. & Klapilová, K. (2021). The Prevalence of Paraphilic Interests in the Czech Population: Preference, Arousal, the Use of Pornography, Fantasy, and Behavior, The Journal of Sex Research, 58:1, 86-96.
IMAGEM: (Saturnalia (1783) por Antoine Callet)